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VIRTUDES MORAIS

Tamanho era o cuidado do Servo de Deus D. Manuel Mendes da Conceição Santos em escrever com perfeição, que gostava de emendar todas as provas dos seus escritos, mesmo não assinados ou subscritos por heterónimos, em A Defesa e Novidades, lamentando as gralhas que escapavam aos tipógrafos e aos revisores. Várias vezes as casas editoras estrangeiras dos breviários lhe agradeceram os reparos feitos a erros no latim litúrgico. A sua linguagem vernácula era tersa e castiça, evitando e combatendo os estrangeirismos. Os seus períodos, longos e bem torneados. Nem sempre, porém, andava em dia com a ortografia oficial. E quando os secretários lho notavam, desculpava-se humildemente dizendo : « Burro velho não aprende linguagem ! »

Manifestava-se a sua HUMILDADE pedindo desculpa aos cerimoniários, mesmo seminaristas, quando se enganava nas cerimónias religiosas, apesar do cuidado exrtremo que tinha na sua preparação. Gostava de escutar atencìosamente os seus interlocutores, especialmente à mesa, ouvindo de boamente os seus familiares e rindo-se inocentemente das histórias e casos curiosos que contavam, a que acrescentava também histórias de tempos volvidos. Todavia não consentia que se murmurasse na sua presença.

Dotado de uma PACIÊNCIA quase ìrlalterável, não manifestava desagrado quando algum dos familiares no Paço lhe respondia desabridamente. No entanto, não se esquecendo de que devia corrigi-lo, aproveitava o ensejo de encontrá-los mais receptíveis e, principalmente, por ocasião dos retiros sacerdotais, a fim de lhes chamar a atenção para esses modos menos res

peitosos. E não faltavam ocasiões para essas manifestações de desagrado da parte dos secretários, os quais não chegavam para as encomendas, sobrecarregados sobretudo com a correspondncia que se amontoava nas secretárias e a que urgia responder.

Ditava simultaneamente duas cartas e, às vezes um artigo de jornal, um discurso ou um sermão, ocupando continuamente os secretários, alguns dos quais ficaram com a saúde abalada. Mas era tão humano o bondoso Prelado, que sendo o terço rezado na capela, depois do jantar, e, vencidos pelo sono, os familiares não respondessem às Ave Marias e Pai Nossos rezados muito devota e pausadamente pelo Senhor D. Manuel, acabava ele por responder sòzinho e voz alta, não tendo, depois, uma palavra de censura para os dorminhocos, embora Jesus a tivesse tido para os Apóstolos no Jardim das Oli­veiras. O Servo de Deus gostava de dialogar o breviário com um dos secretários, geralmente depois das 22 horas, mas. quando via o secretário a rezar ensonado, mandava-o deitar-se e continuava sòzinho a rezar. Mau grado o pouco tempo que destinava ao sono (chegava a passar noites a trabalhar sem se deitar) não se via dormitar nas longas cerimónias ou em escutando discursos e sermões, mesmo que à volta outras pessoas se deixassem vencer pelos braços e abraços de Morfeu.

A virtude da OBEDIÈNCIA patenteava-se no respeito com que acatava todas as ordens e normas emanadas da Santa as fazia cumprir, mesmo que tivesse de sofrer contrariedades e afrontas, como aconteceu nos anos que se seguiram à implantação da República e com a fundação do Centro Católico Português, de que foi um dos principais obreiros. A sua obediência, dócil e pronta à Santa Sé, era modelo vivo e argumento convincente para os seus súbditos, especialmente os padres. Quando estes lhe objectavam o sacrifício que determinada nomeação lhes acarretava, pegava na cruz peitoral (gesto que lhe era peculiar e contínuo), e mostrava-a dizendo :— « Esta não é menos pesada do que a tua. Queres trocá-la ?... » A inflexão firme e suave da sua voz, bem como o gesto expressivo e convidativo, eram suficientes para amainar as tempestades e subjugar as vontades.

A sua PRUDÊNCIA revelou-se eximiamente no modo como procurou chamar ao recto e digno cumprimento dos deveres sacerdotais os padres que viviam à margem das leis eclesiásticas, usando suave e firmemente o báculo pastoral para trazer ao aprisco as ovelhas desgarradas e, só baldados todos os esforços suasórios, aplicar a pena de suspensão aos poucos rebeldes. Não aceitava de leigos queixumes contra sacerdotes, que não fossem assinadas pelas pessoas queixosas.

Na modéstia e no contacto com senhoras era cheio de delicadeza e de prudência. Assim, quando uma senhora de grande respeitabilidade, em cuja casa ficaria hospedado numa localidade da Arquidiocese, lhe enviou o seu automóvel para o transportar, ao saber que vinha nele uma senhora nova, filha da sua anfitriã, mandou agradecer, pediu desculpa de não aproveitar o carro e solicitou o empréstimo de outro automóvel, porque ainda então o Prelado eborense não tinha carro e socorria-se dos que lhe emprestavam os diocesanos generosos. A sua delicadeza não impedia de manifestar desacordo com as modas imorais, chegando a ponto de recusar a Confirmação a filhas dos donos da casa onde se encontrava hospedado, mandando-as às mães para que as vestissem mais modestamente. Contava o seu sucessor D. Manuel Trindade Salgueiro que, ainda nas últimas conferências episcopais em que participou, insistiu para que o Episcopado publicasse uma nota contra as modas menos decentes.

O zelo pela castidade dos seus padres mostrou-o na insistência com que nos retiros a inculcava nos retiros e revela-se neste episódio : pedira a um secretário para lho comprar determinado diário vespertino de Lisboa e, como reparasse que o jornal apresentava uma figura feminina pouco decente, procurou ocultá-la aos olhos do jovem secretário.

Aparentemente indeciso, levando tempo a deliberar, era inabalável nas suas decisões, parecendo não haver dificuldades para a realização dos seus planos. Para isso solicitava orações das comunidades religiosas, especialmente do Carmelo de Lisieux, encomendando-se, às três irmãs carnais de Santa Teresa do Menino Jesus, religiosas naquele convento. Aquando da aquisição da Quinta de Santo António, em Évora, em 1938, destinada inicialmente a Seminário Maior, escreveu em carta ao seu secretário particular, representante do Prelado na transacção:

« Eu tinha pedido em minhas orações que se fizesse só o que fosse do agrado de Deus, e a esta intenção se associaram de resto as almas boas; portanto devemos tomar a compra como indício da vontade de Deus. Em sua munificência infinita devemos, pois, esperar os recursos para a pagar.

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O contrato fechou-se no último dia do Coração de Maria. Não é um indício consolador ? »

As suas decisões não eram, porém, inflexíveis ao ponto de não se adaptar às realidades. É o caso da Quinta de Santo António, onde não chegou a ser construído o pavilhão projectado para o Seminário Menor, como tanto desejara, quer por dificuldades surgidas por parte da Direcção dos Monumentos Nacionais, quer pelo desagrado que causaria em Vila Viçosa a saída do Seminário da Vila Ducal. Entretanto, a Quinta, propriedade do Seminário Maior, tem sido um local excelente para retiros, cursos e convívios. Os participantes dos Cursos de Cristandade da Arquidiocese chamam-lhe a« Quinta dos Milagres », pela transfiguração espiritual ali operada em milhares de cristãos de ambos os sexos, decerto também pela intercessão do Servo de Deus, cuja beatificação foram precisamente os Cursos de Cristandade a pedir, como adiante se dirá.

Sem ser expansivo, naturalmente por temperamento e sobrenaturalmente por vida interior intensa e espírito de recolhimento, D. Manuel Mendes da Conceição Santos era aparentemente frio e distante, mas sempre afável e delicado para toda a gente, pedindo tudo por favor, mesmo aos empregados do Paço Arquiepiscopal. Nos salões era um verdadeiro « gentleman », gostando de imitar S. Francisco de Sales não só na mansidão como nas boas maneiras. No trato familiar irradiava uma simplicidade atraente e acolhedora. Não tinha horas marcadas para audiências, porque estava sempre disponível para a todos receber, especialmente os seus padres, que aliás nunca deixava de visitar quando adregava de passar pelas suas paróquias, nas contínuas viagens apostólicas pela Arquidiocese.

Sempre optimista, a sua ALEGRIA era serena e inocente. Quando viajava através da Arquidiocese, distribuía abundantemente as suas bênçãos por todas as pessoas que encontrava na estrada. Se via algum pastor, saudava-o, chamando-lhe colega, porque também ele era pastor de almas.

Em viagem no Estrangeiro não levava exteriormente sinais episcopais, o que ensejava ouvir por vezes comentários e palavras desabridas contra o clero. Assim, numa viagem a Lurdes, certos portugueses que viajavam na mesma carruagem, julgando-o padre francês e ignorante da nossa língua disseram o pior possível dos padres. Ao mudarem de compartimento, esqueceram-se de um guarda-chuva, que o Servo de Deus lhe levou, exprimindo-se em português, sem queixas nem azedume, o que os confundiu. Em Veneza, na Catedral de S. Marcos, não foi bem tratado por um cónego rabujento, quando lhe pedia para ver o tesouro da igreja. Enquanto o cónego foi buscar as chaves, pôs o solideu na cabeça, meteu o anel episcopal no dedo e descobriu a cruz peitoral. O cónego, ao regressar, reconhecendo que não tratara bem o Bispo, caíu de joelhos, pedindo-lhe desculpa. O Senhor Arcebispo levantando-o, riu-se e desculpou-o.